O monge beneditino Simón Pedro Arnold, fundador do Mosteiro da Ressurreição em Chucuito – Peru, no lançamento de seu livro “Nicodemo, el punto cero de la fe” (Editorial Claretiana e ITVCA) nos fez esta brilhante afirmação de que “o Espírito Santo é irreversível”. O Espírito criativo de Deus nos deixa a marca do que não passa e não volta atrás. É um doce vento que impacta os caminhos da história sem aprisionar-se nas concepções voláteis da humanidade. Há no Espírito um movimento que abre portas e vislumbra o horizonte sem deter-se em ideias e abstracionismos aos quais a humanidade está acostumada. Ele vai além de nossas acrisoladas ideologias revelando a sensibilidade do amor de Deus que fortalece a fé nas tomadas de decisões, sobretudo, as que envolvem o sentido da esperança.
Nesta jornada, aberta pelo Espírito Santo, a CLAR (Conferência dos Religiosos da América Latina) promoveu um oportuno debate em Córdoba-Argentina entre os dias 22-24/11/24, sobre o tema jubilar “Vida Religiosa: Sentinela de Esperança”. As reflexões regadas de senso crítico sobre a realidade circundante trouxeram aos participantes (presenciais e online) dos 22 países do continente latino-americano a necessidade de ver, julgar e agir segundo a ótica da fé comum, que convoca a Vida Religiosa Consagrada a alimentar a esperança em tempos que desafiam a humanidade contrastada pelos novos valores de mercado que afrontam a dignidade e a filiação divina.
A VRC presente no congresso, foi convidada a refletir sobre a esperança desde as perspectivas: sociológica, psicológica, pneumatológica, cristológica e eclesiológica, seguidas de fecundos testemunhos de consagrados e leigos que são sentinelas do reino atuando positivamente na defesa e promoção integral da vida e da criação.
Os conteúdos partilhados estão carregados de provocações e desafios à VRC neste contexto em que se abrem as portas do grande Jubileu da Esperança. Foram significativas as contribuições dos assessores com temas que merecem aprofundamento em nossas comunidades tão logo, haja a publicação do material preparado e disponibilizado pela CLAR. Apresento um breve resumo dos principais pontos que favorecem nossa tomada de consciência sobre nosso lugar no mundo como sentinelas da esperança.
Na análise sociológica, Sol Prieto uma leiga, doutora em Ciências Sociais, salientou que estamos sob a égide de uma emergente crise social que vem se arrastando desde antes da pandemia de Covid-19, caracterizada pela absurda desigualdade, pelas polarizações (políticas e religiosas) e a erosão da democracia, que geram constantemente ondas de violência e opressão por parte dos empreendedores políticos. Reconhecemos o panorama sombrio dos tempos em que vivemos com estruturas instáveis e insustentáveis que ameaçam os povos. Não são apenas as estatísticas que nos alertam a abrirmos os olhos, mas os inúmeros testemunhos daqueles efeitos reais e palpáveis na vida das pessoas que sofrem e, constantemente são humilhadas pelo jogo de interesses das classes de maior poder aquisitivo. As soluções a estes problemas devem ser concretas e estruturais, enfatizadas na justiça social e equidade de gênero e raças. É essencial que exista vontade política, unidade social e um genuíno compromisso para fortalecer a democracia e reduzir a desigualdade. A VRC inserida neste ambiente deve ser sinal de esperança enfrentando com determinação e profecia essa cultura de morte que afeta nossos povos latino-americanos.
Na perspectiva psicológica, o P. Fernando Falcó, MSpS (psicoterapeuta psicanalítico) destacou que a VRC atravessa um descenso de recursos, de escassez de pessoas e envelhecimento de seus membros, o que tem gerado tensão, pressão e constrangimento. A grande questão a ser refletida é: este ambiente conflitivo pode ser um espaço onde emerge a esperança? É urgente que nos debrucemos sobre nossa realidade histórica e busquemos compreender os motivos da redução de membros em nossos Institutos para encontrarmos a reais saídas de uma renovação, reafirmando nossa identidade e pertença. Neste processo de mudança se apresentam dois obstáculos chaves: a espiral da deterioração e a inércia institucional. Um Instituto se deteriora por diversos motivos: quando o mesmo incorpora menos e novos recursos vitais para promover e capacitar seus membros; quando tende a gerar menos serviços de qualidade; conforme a sua estrutura normativa perde força, os interesses dos indivíduos se impõem; com aceitação de outros trabalhos que compensem o pouco que lhes retribuem, gerando menos para a organização; quando a redução dos seus membros se torna uma realidade irreflexiva, afetando o sentido de pertença organizacional que leva ao abandono; pela falta de renovação da Pastoral Vocacional; na falta de desejo de investir e crescer como Instituto. E por outro lado existe a inércia, cuja origem está na rotinização dos organismos que se opõem às mudanças, dando falsa sensação de que tudo está em ordem, apesar dos membros terem consciência da necessidade de transformação. Quando as práticas se automatizam, elas se mantêm solitárias dando-se por certas, resistindo ao que deveria ser fonte de renovação. É um obstáculo a ser superado com as oportunidades que surgem do próprio ambiente mediante a urgente percepção da realidade. A escuta da realidade é chave para investir em oportunidades de transfiguração institucional.
Em um contexto de redução vocacional, a esperança pode emergir com confiança se oferecermos nossos serviços como geradores de vida, facilitando trajetórias pessoais para que os dons sejam partilhados segundo nosso carisma comum. Um olhar desde dentro de nossas comunidades importando-se com os que são parte de nossa vida e constroem juntos a unidade farão a reconstrução de nossa identidade carismática.
O teólogo Fr. Michael Moore OFM, nos trouxe uma belíssima iluminação sublinhando que a VRC deve ser testemunha de uma esperança fundamentada no Cristo Crucificado-Ressuscitado. Esperamos em que, em quem, por que, como e até quando? A VRC é sentinela de qual esperança? “Se Cristo não ressuscitou então é vã a nossa fé” (1Cor 15,14), porém, “se Ele não morreu, não ressuscitou… e se não viveu, não morreu. Portanto, nossa fé se fundamenta em um ressuscitado que foi crucificado e que antes foi marginalizado”. Esperamos em Deus, por Jesus, pela força do Espírito. É essencial recuperar a totalidade do acontecimento Jesus Cristo, em sua correlação hermenêutica de vida-morte-ressurreição como fundamento de uma esperança razoável.
Jesus apostou pela chegada do reino como projeto de humanização: esperou em um Deus distinto, que nos convidava a nos relacionarmos de um modo distinto (com Ele, conosco e com os demais). Essa era a sua práxis de misericórdia que confrontava as autoridades religiosas de seu tempo. Ele propõe uma nova forma de se relacionar com o Pai, não mais centrada no templo, mas na sua pessoa e de sua pessoa à história (crucificada). Com sua morte, Ele rasga o véu do templo e abre outra via de acesso a Deus que passa pelo próximo. Em Jesus, Deus assumiu o conflito permanente da história quando se encarnou. Provou do choro humano e das dores da carne, se fez desesperança, entrou na noite escura da agonia e deu um forte grito no abandono da cruz. No silêncio do calvário rompeu com o desafio de ser quase vencido diante dos espectadores. Mas na ressurreição confirmou sua identidade de vítima, de vida e de futuro da humanidade, desautorizando os vitimados, a morte e o presente.
Como VRC devemos ser sentinelas de uma esperança que não decepciona e se alimenta do Crucificado-Ressuscitado cultivando uma verdadeira paixão pela realidade a fim de realizar uma leitura crítica dela, capaz de discernir as casuais situações de desesperança que vivem os povos e nomear os novos rostos de justiça e paz que estão por vir. Devemos “cultivar a flor da esperança entre as chagas do Ressuscitado” (D. Pedro Casaldáliga).
O P. Luiz Alberto Gonzalo Díez CMF, nos partilhou sobre a perspectiva pneumatológica-mística, desde o Espírito que nos acompanha e nos sustenta. Vivemos em um tempo privilegiado de esperança como consagrados cumplices do Espírito em situações de debilidade mundial. É urgente sairmos de uma realidade endogâmica, superando os limites de uma missão que se reduziu a ambientes domésticos e alcançar o sentido da vida. Aprender a olhar para outro lado e nos deixarmos ser olhados em um processo de sinodalidade e aprendizado.
Os tempos de debilidade se caracterizam não pela velhice, mas pela desconexão com a vida; não por carências de ideias e sim por falta de união evangélica; não pela debilidade dos carismas, mas por convertê-los em economia; não por falta de organização, mas por ausência de utopia; não por vivermos juntos, mas por não sonharmos com a comunhão. Se a debilidade fosse uma oportunidade, nos tornaria mais ágeis para chegarmos antes, mais necessários para respondermos melhor e mais frágeis buscando alternativas. A debilidade é um dom do Espírito pois nos fala de discernimento, de sinais de esperança, nos liberta da eficácia e nos capacita para o encontro. Para que nossos carismas falem, eles necessitam outro lugar, outra comunhão, outra libertação e outra organização.
A VRC precisa “aprender a desaprender” e isto exige uma séria e responsável conversão para refletir sobre nossos estilos esgotados de relacionamentos; as irreais seguranças que construímos; a informação como um bem escasso tendo as redes sociais como anedotas; que a melhoria na vida comunitária é questão de vontade e não só de regras; que não somos superiores à maioria do povo; que as pluralidades são temas atuais; crer que é tempo para outro tipo de liderança, de criar e não restaurar; que as comunidades não são a soma de ritmo, horário e penitência e sim de identidade. Começar novamente com os sinais de vida, significa conquistar a espontaneidade, desfrutar a oração, atrever-se a retomar o caminho, descobrir o que é conviver e perder o medo da necessidade. O exercício da comunhão nos exige uma personalização do valor da comunidade, um exercício maiêutico paciente no qual o mais importante são os membros que cada carisma possui, reconhecer e valorizar as pessoas muito mais do que a organização institucional. A VRC deve recuperar a essencialidade e não ter medo de abandonar as estruturas que paralisam a missão evangelizadora. Eis um belo testemunho de esperança no Espírito!
O teólogo e participante do Sínodo da Sinodalidade Rafael Luciani, dentro de uma perspectiva eclesiológica-missional, refletiu sobre a importância da sinodalidade como dimensão constitutiva da Igreja, oferecendo uma profunda iluminação teológica sobre as esperanças e desesperanças no contexto atual. No seu entendimento, a sinodalidade não é uma opção, mas uma chamada fundamental para todo o Povo de Deus. Esta perspectiva convida a uma renovação estrutural e relacional que permita um caminho de escuta mútua, discernimento e corresponsabilidade na missão da Igreja. Viver sinodalmente, “é viver o Reino de Deus”. A Igreja deve abrir suas portas a todos e construir uma comunidade que seja inclusiva e missionária, pois a missão é o sentido primeiro da Igreja e sua verdadeira reforma implica atender à identidade e reconfiguração relacional das vocações, carismas e ministérios.
Temos uma jornada santa e desafiadora como Sentinelas da Esperança nos múltiplos e necessários carismas que formam nossa identidade junto ao Povo de Deus. É salutar como VRC nos unirmos frente às demandas sofridas da humanidade e juntos, cordial e compassivamente nos darmos as mãos para auxiliar e consolar nossas comunidades e nossos Institutos. Enquanto pensarmos e agirmos paralelos e fechados em nossos organismos, corremos o risco de nos desprendermos do Crucificado-Ressuscitado e viver os carismas isolados. Sem conversão e discernimento, facilmente seremos manipulados pelas distrações, perdendo a essência da vida e enfraquecendo o potencial ministerial que nos foi presenteado vocacionalmente.
Tem futuro essa nossa Vida Religiosa Consagrada? Existe esperança em nossos corações? Sim! E podemos com dizer com toda a nossa verdade e vontade profética que nada nos decepciona, pois, o amor supera as lacunas da dor! Somos sim moldados na esperança “porque nossas biografias são escritas com opções de esperança (vida), que muitas vezes são contestadas ou negadas (morte) e temos que nos erguer como uma fênix dessas contradições, mas agora ressignificadas em uma chave jesuânica (ressurreição). É por isso que nossa esperança não é ingênua, mas é forjada na ambiguidade da história, remando contra a maré, que implica um convite a acreditar e continuar esperando (ativamente) não apenas depois de ter vencido a cruz, porque os perpetradores continuam a ter a penúltima palavra nessa história, mas também para acreditar e esperar a partir do próprio coração da experiência do mal, do pecado e da morte” (Michel Moore).
E assim, apaixonados por Cristo sejamos Sentinelas da Esperança! Paz e bênçãos!
Pe. Nilton Cesar Boni cmf
Missionário Filho do Imaculado Coração de Maria – Claretiano
Fontes Consultadas
- ARNOLD, Simón Pedro. Nicodemo, el punto cero de la fe. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Editorial Claretiana, ITVCA, 2024.
- PRIETO, Sol. El desafío de la igualdad, algunas claves para leer la coyuntura de América Latina y el Caribe. Córdoba-Argentina. 22-24/11/24. Apresentação em slide Power Point. Slides 1-21. Color, V Congresso Latino-americano da CLAR.
- FALCÓ, Luis Fernando. Entre el cambio y la inercia: la vida consagrada haciendo frente al descenso de recursos y sus impactos psicosociales. Córdoba-Argentina. 22-24/11/24. Apresentação em slide Power Point. Slides 1-43. Color, V Congresso Latino-americano da CLAR.
- MOORE, Michel. Iluminación teológica desde el crucificado-resucitado. Córdoba-Argentina. 22-24/11/24. Apresentação em slide Power Point. Slides 1-51. Color, V Congresso Latino-americano da CLAR.
- DÍEZ, Luis Alberto Gonzalo. Iluminación teológica desde el espíritu que acompaña y sostiene. Córdoba-Argentina. 22-24/11/24. Apresentação em slide Power Point. Slides 1-13. Color, V Congresso Latino-americano da CLAR.
- LUCIANI, Rafael. Perspectiva eclesiológica-misional: iluminación teológica desde las esperanzas y desesperanzas en la iglesia. Córdoba-Argentina. 22-24/11/24. Apresentação em slide Power Point. Slides 1-64. Color, V Congresso Latino-americano da CLAR.
- Boletins de imprensa do V Congresso Latino-americano da CLAR, dias 1-3, 22-24/11/24.